“Almerinda Gama: a sufragista negra” resgata a trajetória de uma mulher pioneira na luta pelos direitos das mulheres negras, revelando seu legado invisível na história brasileira
A reconstrução meticulosa de uma vida de luta, afeto e arte que foi relegada ao pano de fundo da história. Assim pode ser resumido o livro Almerinda Gama: a sufragista negra, escrito pela jornalista Cibele Tenório que acaba de ser publicado pela editora Todavia. Na próxima quarta-feira, dia 2 de julho, às 19h, o livro será lançado no Sindicato dos Jornalistas DF (SIG Qd. 2 lotes 420/430/440) com uma conversa entre a autora Cibele Tenório e a também jornalista Juliana Cézar Nunes. O bate-papo será seguido de sessão de autógrafos.
Mulher, negra, nordestina, jornalista, datilógrafa, militante feminista, sindicalista, advogada, poeta e musicista. Essas são algumas das múltiplas facetas da alagoana Almerinda Farias Gama (1899-1999), uma das lideranças da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (fbpf), entidade à frente da campanha sufragista brasileira entre os anos de 1920 e 1930. Neste livro, que foi vencedor do Prêmio Todavia de Não Ficção, Cibele Tenório dá cor às mil vidas de uma feminista negra cuja história íntima — e em tudo impressionante — se confunde com a história do Brasil.
“Almerinda Gama não apenas escreveu seu nome na história: ela digitou, com firmeza e convicção, cada letra da luta por igualdade. Mulher, negra, sufragista e intelectual — sua trajetória é uma chave que abre as portas esquecidas da memória brasileira. Seu legado, incansável e necessário, continua a inspirar a construção de um Brasil mais justo e plural, onde a voz das mulheres negras jamais será silenciada.”
— Sueli Carneiro
Mais sobre o livro, pela historiadora Ynaê Lopes dos Santos
O que se espera de uma mulher?
De algum modo, a vida de todas as mulheres se tece em meio a essa pergunta. Não somos nós necessariamente que a fazemos. Mas a pergunta está sempre ali, à espreita, para ter certeza de que aquilo que se espera esteja dentro de normas preestabelecidas que ajudam a definir o que é ser mulher.
Este livro pode ser entendido como o avesso dessa pergunta.
É vestida com uma estola de pele, uma boina sobre os cabelos curtos e cacheados, e com um sorriso no rosto que Almerinda Gama pega em nossa mão e nos convida a revisitar o Brasil que ela viveu e transformou. Uma visita que dialoga com os “grandes nomes da época”, mas que nos obriga a ver o país pelo olhar de uma mulher, negra, nordestina, feminista, sindicalista, poeta e sufragista.
Mas se engana quem imagina ter em mãos um livro que se circunscreve no momento em que as mulheres passaram a votar no Brasil. Não que isso seja pouco. É uma virada e tanto na nossa história e na vida de Almerinda e do país. Uma virada pouco conhecida e muito bem narrada por Cibele Tenório. Porém, assim como Almerinda, a autora do livro é uma mulher negra e nordestina que nem de longe se limitou a fazer o que era esperado. E ao decidir contar a trajetória de Almerinda Gama, Cibele Tenório honrou sua vida e nos presenteou com este belo exercício de interseccionalidade.
Seu livro não é apenas um resgate da trajetória de Almerinda, mas uma escolha deliberada e muito bem cerzida de mergulhar nas tantas facetas e camadas que compuseram a vida dessa mulher. Uma convocação para abandonarmos de vez a ideia de que há um espaço reservado para as mulheres na história do Brasil, para entendermos que, de fato, a história do Brasil não existe sem as mulheres — em toda a sua complexa diversidade.
Sobre a autora
Cibele Tenório é doutoranda e mestra em história pela Universidade de Brasília (UnB) e estuda o sufrágio feminino e o ingresso das mulheres na política institucional brasileira. Desde 2005 atua como repórter, roteirista, produtora, editora e apresentadora, com passagens por diversos veículos de imprensa públicos e privados. Em 2024, venceu o Prêmio Todavia de Não Ficção 2024.

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Um trecho
A mulher que vivenciou dois prolongados períodos ditatoriais revelava que um dos seus maiores orgulhos era ser eleitora: “Eu jamais perdi uma eleição”, dizia satisfeita. Guardava seus títulos eleitorais como tesouros, e o primeiro deles, emitido em 1933, faz parte do conjunto de documentos que consultei no Rio de Janeiro.
Descobri que, ao tempo da foto, 1933, Almerinda já era viúva e não tinha posses. Contava com a destreza dos próprios dedos para assegurar sua subsistência: era datilógrafa, e foi pioneira entre as lideranças sindicais femininas ao fundar o Sindicato dos Datilógrafos e Taquígrafos e Secretários do Distrito Federal — uma associação composta exclusivamente de mulheres, mas cujo nome o Ministério do Trabalho exigiu registrar no masculino.
Mesmo com a rotina frenética dos escritórios, a alagoana desdobrava-se, alternando frentes de atuação política. Minha pesquisa revelou que, em nenhuma delas Almerinda teve um desempenho tímido, nem apenas simbólico, pelo contrário. Emprestou competência, carisma e brilhantismo ao movimento de mulheres, ao associativismo proposto pela Ala Moça do Brasil, ao partido em que consta como única mulher entre os fundadores, e aos companheiros e companheiras com quem lutava no movimento sindical. Interessava-se também em alimentar e exercitar seu espírito criativo por meio de expressões artísticas que foram suas paixões até o fim da vida: a música e a poesia.
Fruto de seu tempo, Almerinda foi uma mulher dos anos 1930, do Brasil que experimentava transformações profundas em seu tecido social. O país encontrava-se em transição de uma economia predominantemente rural para um modelo urbano e industrial e assistia à ascensão de Getúlio Vargas ao poder. Esse período foi marcado pelo rompimento com a experiência liberal da Primeira República e pelo surgimento de um projeto político em que o Estado se impõe como mediador das relações entre capital e trabalho. Almerinda não apenas testemunhou esses processos, mas se posicionou ativamente com relação às mudanças que aconteceram.
Além de ajudar a compreender as ações políticas protagonizadas por mulheres nas primeiras décadas do século xx, a trajetória de Almerinda revela a experiência de uma mulher negra na sociedade brasileira do pós-abolição. Sua postura independente e crítica em meio a uma sociedade injusta e desigual fez com que ela precisasse gastar bastante energia em diversas esferas de atuação. Não bastava ser boa profissional. Ela também era atuante na comunidade, dava vazão à sua criatividade e era atenta à vida política.
Com a coragem de ambicionar ter poder e recusar viver o destino que a sociedade reservava às mulheres negras, subvertendo o lugar de submissão que lhe estava destinado, Almerinda reverteu a história escravocrata e pavimentou o caminho para as que viriam depois dela.
Embora, mais recentemente, Almerinda tenha recebido alguma atenção em espaços específicos, ela permanece apagada das narrativas históricas sobre a participação feminina na política do país. Pouca gente sabe quanto ela contribuiu para emancipar as mulheres brasileiras.
Qual o motivo dessa lacuna? Em primeiro lugar, mulheres são personagens raramente destacadas nas narrativas. Relegadas ao esquecimento, foram encaminhadas ao silêncio, à obediência e à resignação. Sabe-se pouco a respeito das que vieram antes de nós. E se há desconhecimento sobre as mulheres em geral, a invisibilidade e o apagamento com relação às mulheres negras são ainda maiores, já que enfrentam a subalternização tanto de gênero quanto de raça. Um exemplo disso é que nos poucos espaços em que recebeu destaque por sua vida de luta, Almerinda foi relegada a pequenos verbetes nos quais uma interrogação ocupava o espaço destinado ao ano de sua morte. Determinada a reparar essa lacuna, segui rastros, percorri arquivos e entrei em contato com dezenas de cartórios de registro civil até localizar sua certidão de óbito.
Além do apagamento deliberado, a outra razão para Almerinda ter permanecido à sombra ao longo dos anos é que, mesmo tendo sido uma mulher ligada ao trabalho com o texto, ela não escreveu sobre si. Não deixou diários nem há livro de memórias. Talvez por ter sido totalmente absorvida pelas urgências da vida prática de quem dependia de si (e apenas de si) para ter algum sustento. O que se sabe sobre Almerinda, dito por ela mesma, provém de entrevistas que concedeu já idosa — na batalha contra o esquecimento, Almerinda lutou até o fim com as poucas armas que tinha ao alcance dos dedos. Também em razão disso, em algumas situações, contamos apenas com sua perspectiva sobre os acontecimentos e suas decisões.
Um dos desafios de reconstruir a trajetória de figuras públicas que não fizeram parte de círculos hegemônicos de poder, como é o caso de Almerinda, diz respeito à tarefa complexa de localização de documentos e fontes. Ao contrário de outras biografias, que podem demandar a sintetização de um grande volume de informações, este trabalho de investigação histórica e jornalística exigiu um garimpo minucioso para encontrar qualquer pista sobre Almerinda em arquivos públicos, jornais de época, filmes, músicas, publicações raras, fotografias e depoimentos. Mesmo assim, quando o assunto é Almerinda, ainda existem muitas perguntas sem resposta.
Ignorada pelos livros de história e longe dos acervos públicos, Almerinda não foi acolhida pelas instituições nem respaldada pela historiografia — ainda mais se comparada à companheira de luta feminista Bertha Lutz, que meticulosamente preservou documentos, cartas, projetos parlamentares e gravou em áudios suas experiências. Não à toa, as memórias do movimento sufragista no Brasil, por vezes, parecem cristalizadas unicamente em Bertha. Desbotadas ao fundo, encontram-se as “Almerindas”, mulheres que também foram incansáveis na luta por dignidade, mas que por causa do racismo e do preconceito de classe foram excluídas dos registros oficiais. Resta resgatá-las e recuperar a sua contribuição.
Lançamento:
2/7, às 19h, no Sindicato dos Jornalistas DF
SIG Qd. 2 lotes 420/430/440
Contato: Cibele Tenorio
(61) 98161-1054
Instagram.com/cibeletenorio