O escritor recifense Rafael Godoy estreia com Bichos Cegos Tateiam Feridas, coletânea de contos viscerais que retrata abandono, desejo e violência urbana com lirismo brutal

O pernambucano Rafael Godoy faz sua estreia na literatura com “Bichos Cegos Tateiam Feridas” (Mondru, 62 págs.), coletânea de 20 contos divididos em três partes — “Os bichos”, “A cegueira” e “As feridas”. A obra mergulha em histórias de dor, desejo, abandono e violência urbana, dando voz a personagens que habitam os limites da cidade, do corpo, do afeto e da linguagem. O texto de contracapa do livro é assinado pelo escritor Marcelino Freire.

Brutalidade, sexualidade, afetos, desamores, renúncias e violações atravessam narrativas em que a sobrevivência, ou a luta por ela, é o que resta a personagens marginalizados vivendo as semelhanças e contradições entre homem e bicho. Com narrativas marcadas pela oralidade, o livro expõe com crueza e lirismo os embates de quem vive à margem, onde a violência cotidiana se mistura à saudade, ao desejo e à esperança.

A oralidade sustenta o poder de voz das histórias, que oscilam entre a carnificina e o sarcasmo, abrindo espaço para reflexões sobre desigualdade social e rupturas de identidade no mundo contemporâneo. Como define o próprio autor, “maltratar, pisar, ignorar, tratar como bicho, só vai fazer com que mais ódio cresça, se espalhe e acabe matando a gente de ignorância”. Em “Bichos Cegos”, não há grandes intervalos para o respiro.

Literatura que pulsa nas feridas

Com narradores em primeira e terceira pessoa, os contos parecem habitar o mesmo ambiente de miséria humana. A autenticidade se revela tanto nos diálogos e trejeitos das personagens quanto na construção das cenas, intensas e surpreendentes. O ritmo poético da prosa, marcado por cadência e rima, imprime lirismo mesmo em meio à brutalidade.

Ao recusar embelezar a miséria, Godoy opta por uma escrita direta e desobediente, que não busca piedade ou redenção, mas sim escancarar a falência da linguagem institucional e da lógica social. Seu texto lança o leitor diretamente no barro, no sangue, no corpo. É exatamente aí que reside sua força: na coragem de não fingir que existe conforto.

Entre a história, o design e a escrita

Rafael Cabral Godoy, 29 anos, nasceu em Recife (PE), cresceu entre a capital e Camaragibe e vive atualmente no Recife. É formado em História pela Universidade de Pernambuco (2016–2021), período em que atuou como professor na zona da mata pelo Programa de Residência Pedagógica. Em 2023 concluiu a graduação em Design Gráfico. Em 2024, co-fundou com a esposa e sócia, Rafaela Maria, o Estúdio PUYA!, onde atua como diretor de arte.

Além do design, dedica-se à literatura desde a adolescência. Começou escrevendo crônicas, até se encontrar no conto. Depois de mais de uma década de tentativas e rascunhos, encontrou sua voz narrativa. “‘Bichos Cegos Tateiam Feridas’ não é só um sonho realizado, é um ensinamento de persistência e um convite ao pertencimento. Agora eu consigo me chamar de escritor”, afirma.

Bichos Cegos Tateiam Feridas
Capa do livro: Bichos Cegos Tateiam Feridas | Imagem: Ilustrativa

Trecho (pág. 57)

“Fiquei alguns anos pela casa, perambulando, mexendo nas gavetas, procurando rumo dentro da bolha. Quando pegou fogo, eu soube por um vizinho que me ligou. Corre, o fogo tá comendo tudo, tua casa agora é só cinza. Entrei contrariando os bombeiros, procurei a carta no meio do inferno e a achei no canto do que era uma estante com fotos antigas. Li uma última vez, a centésima trigésima terceira, e só então minha mãe tinha morrido, meu pai tinha sumido, e eu nem conheci esse fodido.”

“Todos os contos deste livro tipo: aquele ensinamento de Júlio Cortázar. Porrada! Eu me sinto particularmente neste livro. É como se eu tivesse encontrado uma companhia. Para eu não ficar, na esquina de um parágrafo, sangrando abandonado. Eis um autor parceiro do meu trabalho. Um cúmplice de ofício. Sempre ligado ao que acontece na rua. De olho em tantos olhos mortos de fome. O pão que o Diabo amassou é o que mais se come. O lodo do lodo do lodo do homem. Dói constatar que não temos mesmo salvação. Literatura nunca foi o terreno da boa intenção. Ai, ai. Bate. Mas também apanha, coração.”

— Marcelino Freire, em texto de contracapa da obra

Adquira a obra no site da editora Mondru:
https://mondru.com/produto/bichos-cegos-tateiam-feridas/